É tudo meio irreal, como as coisas mudam e de repente voltam à mesma forma. Os mesmos sentimentos, mesmas palavras, mesmas lágrimas, mesmas besteiras. Se eu pudesse, sairia correndo pelas ruas, correria até meus pés sangrarem. Correria disso, de como minha vida está. Correria da própria vida.
- Tudo bem, Kate? Você já está ai a muito tempo.
Escuto Theo atrás da porta do banheiro. Estou me encarando no espelho, com meu rosto inchado, meu cabelo despenteado e meus olhos vermelhos. Ridículo.
- Estou bem... - respondo. - só mais cinco minutos.
Volto a me encarar. Limpo meu rosto com um papel áspero, e sinto minhas bochechas arderem. Como você é ridícula, Kate. Nada disso vai adiantar. Nada. Não quero ter que encara-los, e ter que ouvir seus conselhos e encarar seus olhares de pena. Tenho que sair.
Procuro uma janela. Acho uma perto dos vasos, abro o vidro e percebo que dá para passar, então coloco primeiro uma perna e depois a outra, coloco meus pés em cima de uma caixa e me apoio para passar o resto do meu corpo. Quando termino de passar, fecho a janela atrás de mim. Pulo de cima da caixa. Estou em um beco escuro, coloco meu capuz e saio andando. Corra. Então eu corro, corro, corro, corro e corro.
PARO NA FRENTE DE UMA CAFETERIA, o cheiro do café enche meus pulmões. Smell Of Coffee. Olho pela vitrine e no balcão vejo Abel. Minha consciência grita: Vá embora. E eu entro.
Ao abrir a porta, o sino toca e Abel se vira, congelando ao me ver. Engulo em seco e vou em sua direção.
- Kate? - Sua voz é tremula. O que é isso? Abel nervoso em me ver?
- Abel.
- O que você veio fazer aqui?
Permaneço em silêncio.
- Kate?
- Eu não sei...
Ele arregala os olhos e me encara.
- Ok. - Diz, assentindo com a cabeça.- Acho que posso tirar uns vinte ou dez minutos de pausa.
- Tudo bem.
Me sento em uma mesa e Abel vem logo em seguida com duas xícaras de café.
- Tome. Vai ajudar.
Pego a xícara e dou um rápido gole. Quente. Abel puxa uma cadeira e se senta à minha frente. Ele bebe o café e coça o nariz. Fico encarando-o.
- Kate... você estava chorando? - Seu olhar exala preocupação.
Não respondo. Tudo dentro de mim está paralisado, meus olhos ardem e minha cabeça lateja.
- É que seu rosto está vermelho... e seus olhos inchados.
Continuo em silêncio, olhando em seus olhos. Ele morde o lábio e percebo que sua perna está balançando, como se estivesse nervoso.
- Qual é Kate. Me diga alguma coisa. Você me deixa nervoso assim.
- Conheci seu irmão.
- O que?! - Sua voz soa baixa e nervosa.
- Conheci seu irmão Theo.
Ele fica me encarando, sem esboça nenhuma reação.
- O conheci numa banda... ele é o guitarrista.
- Hum.
- Na verdade eu estava com ele agora à pouco, mas fugi pela janela do banheiro.
- Você fugiu? - Seus olhos se arregalam.
- Sim.
- Pela janela de um banheiro? - Percebo que está achando graça.
- Qual é a graça?!
- Nada, é que nunca imaginei você fazendo isso.
Sinto meu celular vibrar, pego-o e vejo o nome do Theo na tela.
- É ele? - Seu bom humor se foi, e percebo que está sério.
- É. - Continuo olhando para tela do celular. - Mas não vou atender. - E desligo.
- Você fugiu dele... ele te fez alguma coisa? - Pergunta sem me olhar.
O encaro por alguns segundos, sentindo a amargura em minha boca.
- Não. Só estava muito sufocada com eles.
- Eles? - Abel me olha.
- O resto da banda.
- Ah... então você conhece tudo mundo?
Franzo a sobrancelha.
- Faço parte da banda.
- Ah.
Coço minha mão e olho ao redor. Todas aquelas pessoas sorridentes, conversando. Algumas crianças brincando com colheres e guardanapos, começo a sentir uma familiaridade com aquilo. Mamãe.
- Tá melhor agora?
Me volto para ele sem entender a pergunta.
- Você disse que estava sufocada...
Puxo o ar pela boca. Tento achar uma resposta para sua pergunta. Se eu estou melhor agora? Não.
- Eu não sei... é que... é que tudo anda tão pesado, sabe? Todos os meus pesadelos resolveram aparecer de um só vez. E eu não aguento mais sentir a garganta doer, meus olhos arderem... Não aguento mais ser aquela que se importa, aquela que sente, a que chora. Por que só eu consigo ver o quanto tudo isso tá errado? Que tudo isso é uma merda?! - Paro por um instante, sem folego e respiro.- Às vezes eu só quero desaparecer.
Abel me encara, sem reação.
- Nossa. Isso tem a ver com seu pai? - Como ele sabe? - É que tem rolado bastante rumor de que você e seu pai não se dão bem.
Mantenho meus olhos presos nos dele, e confirmo com a cabeça.
- Meu irmão resolveu aparecer... quer dizer, não aqui em Chicago, mas lá no Brasil. Foi visitar minha mãe... e só eu pareço tá achando isso errado.
- Errado?
- É! Ele deixou a gente também, igual ao meu pai! Ai, de repente, resolve fazer uma visitinha.
- Ele devia está com saudade da sua mãe.
- Saudade?! - Bufo. - Ele nem deve saber o que é isso. Além disso, minha mãe está toda estranha, como se escondesse alguma coisa, alguma coisa que provavelmente o Felipe já sabe. E o fato dele saber qualquer coisa relacionada a minha mãe e eu não... me dá arrepios.
- Você não sente falta do Felipe? - Abel está me analisando com os olhos, como se procurasse algum sinal.
Fico olhando para seus olhos e analisando sua pergunta. Felipe costumava ser meu melhor amigo,
meu irmão. Mas quando ele foi embora, de uma hora para outra, mesmo sabendo o que a ida do nosso pai tinha me feito, meu chão sumiu e ele nem pareceu se importar.
- Não. Já chorei muito por ele. Agora não quero vê-lo, e ele não tem o direito de simplesmente aparecer em nossas vidas. Eu estava tentando seguir em frente, mas... eu não consigo.
- E eu te magoei, não foi?
Sua pergunta me pega de surpresa. Fico séria e minhas pernas congelam. Abel continua balançando as pernas e mexe na xícara sem parar.
- Eu sei que magoei. Você foi a coisa mais perfeita que me aconteceu nesses meses. - Sinto meu coração parar. Seus olhos estão brilhando e posso enxergar a verdade neles. - Eu não sabia o que estava fazendo, Kate. Sabe, as garotas gostam de ficar comigo, e não pareciam se importar em ser levadas a sério. Mas você com certeza era diferente, você queria levar aquilo a sério e eu percebi, aquilo me deixou nervoso, eu não sabia como fazer dar certo. Então eu só continuei fazendo o que eu sempre fiz...
- Ser um canalha?! - Minha voz sai um pouco alta, mas bem afiada. E eu aperto meus joelhos para me controlar.
Abel me olha triste, como se eu o tivesse magoado. Pera lá! Não reverta o papel.
- Exatamente. Fui um canalha não só com você, mas com todas as garotas com quem fiquei, e só agora me dei conta. Só quando já tinha te perdido. Foi só daquela dia que você gritou comigo e me deixou para fora que me dei conta. Eu... eu não devia ter feito aquilo, Kate. Porque eu gosto muito de você. E a gente, aquilo que eramos, estava sendo a melhor coisa que eu já tinha tido.
Eu estava ali, parada, sem saber o que falar ou o que pensar. O que estou fazendo aqui? Isso são suas desculpas? Meu estômago está doendo, tenho vontade de chorar, de berrar, mas por algum motivo as lágrimas não saem. Há uma secura dentro de mim, um vazio em minha mente e me dou conta que as palavras ditas pelo Abel não me atingem. Besteiras. Mentiras. Dor.
Me levanto e me viro em direção a saída, sou tão rápida que mal consigo ver o rosto do Abel surpreso com meu movimento brusco. Ando firmemente, pisando forte no chão e por alguns segundo penso que vou desmaiar. Então sinto a mão do Abel em meu braço, me impedindo de continuar. Quem ele pensa que é para brincar assim comigo? Minha raiva chega ser palpável, mas não só raiva dele, raiva de mim também por estar aqui. Por ter participado daquela banda, por ter deixado meu pai entrar na minha vida de novo, por ter falado com Felipe, por saber que mamãe esconde algo, por ter me permitido sentir alguma coisa pelo Theo só porque ele me lembrava o Abel, por apesar de como o Abel me fez chorar, ainda me importar com ele. Por você ter sido a única burra da história.
- O que você quer que eu diga, Abel?! - Me viro, furiosa.
Ele parece surpreso e seu olhar para mim é perdido, vago.
- Quer que eu entenda que agora tudo pode ser diferente? Que você nunca mais vai me trai? Que não vai mais mentir? - O encaro sem demostrar nenhum sentimento. Estou cansada demais para isso.- Espera que eu sorria e pule em seus braços, como se nada tivesse acontecido? O que você espera de mim, Abel?!
- Compreensão... - Sua voz sai tão baixa que mal o escuto.
- Lamento, mas minha cota de compreensão já se esgotou. E eu não tenho mais saco para ter que compreender, cansei de deixar que as pessoas voltassem para minha vida, cansei de ter que compreender seus motivos. Sabe por que? Porque no final da conta, seus motivos não são o bastante. Não justificam a dor causada em mim!
Paro para recuperar o folego, e de repente tudo ao meu redor começa a escurecer e escuto o grito de Abel.
- Kate!
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